sábado, 7 de março de 2009


Minha vida mudara radicalmente após a formatura em Beauxbatons. A mudança mais radical foi ter saído da Grécia. Saído da casa e da asa da minha mãe, que sempre fora tão confortável e segura. Vários foram os motivos para que tomasse essa decisão. Entre eles: a necessidade de aprender a me virar um pouco mais sozinha (principalmente nas responsabilidades e tarefas domésticas), estar mais perto de Bernard (agora que nosso namoro estava mais sério do que jamais esteve), mais perto da Academia de Aurores e, claro, a tranqüilidade de saber que para mamãe isso também estava sendo melhor, agora que ela e Richard estavam se dando uma nova chance e tentando recuperar o tempo que perderam separados, criando eu e Isabel (que também apoiava a campanha de deixá-los um pouco mais a sós e livres de responsabilidades conosco, quaisquer que fossem, agora que já éramos maiores de idade, livres e donas dos nossos narizes). Enfim, eu tinha amadurecido muito mais do que já me considerava na época de estudante...
Minha firmeza toda só falhou em um único momento, desde então: a perspectiva de ser apresentada à família de Bernard durante as férias de Natal (ser “aprovada” por eles como uma namorada ideal me parecia de repente crucial, e era. Eu não podia estar mais certa do que sentia por Bernard, e se não conseguisse convencer sua família disso, se eles implicassem comigo ou com nosso relacionamento, eu não saberia o que fazer!). Quase apelei para um suporte da minha mãe quando o grande e temível dia se aproximava, desistindo da idéia imediatamente. Medo de ser detestada pela família dele era como um monstro no armário: não existia e era completamente absurdo que eu estivesse o fantasiando com tantos dentes, cabeças e garras. Psicológico. Surreal. Sinistramente vivo em mim, sem motivo algum para existir.


- Quer parar de bater os pés, Anabel? Não consigo me concentrar nesse artigo, e se não entregá-lo amanhã na redação... – Brenda passou seu próprio dedo indicador por toda a extensão do pescoço, fazendo uma careta significativa depois. Levantei-me do sofá, inquieta. Anne riu.
- Parece uma adolescente. Você e Bernard já namoram há bastante tempo, Bel. Relaxa! Os pais dele vão gostar de você...
- Como você pode ter tanta certeza? – perguntei aflita e sem esconder um tom de desespero na voz. Anne trocou um olhar divertido com Brenda (que parecia ter desistido de se concentrar no pergaminho à sua frente enquanto eu estivesse ali) antes de responder.
- Que motivos eles teriam para não gostar? Bernard está feliz com você, isso é perceptível. Você está se preocupando à toa.

Sentindo a garganta seca demais para responder, caminhei até a sacada olhando a rua embaixo. O dia acabava de nascer, e uma camada fina de neve cobria todas as superfícies sólidas lá fora. Consultei o relógio novamente. Bernard estava atrasado.
Tentando me acalmar, sentei-me novamente no sofá e comecei a brincar com meus dedos das mãos, unindo suas pontas e montando escadinhas, continuamente. Anne estava certa: eu estava parecendo uma adolescente. Aliás, uma criança. Namorava Bernard há quase três anos, estávamos felizes juntos e nunca dera razão alguma para a família dele não ir com a minha cara. Afinal, nem nos conhecíamos “oficialmente”.

- Como você conseguiu adiar tanto tempo? Samuel me levou para conhecer a família quando ainda nem namorávamos “sério”. – ela perguntou despreocupada me avaliando.
- Não sei. Circunstâncias. De qualquer maneira, não é como se não nos conhecêssemos... Na festa de formatura dele, conheci os pais, mas bem superficialmente óbvio. Os irmãos, Amelie e Vincent, conheço de vista, de Beauxbatons, mas nunca conversei com nenhum deles além do convencional cumprimento. Aliás, isso com Amelie. Vincent é um endiabrado! Bernard não tinha muita paciência com ele quando ainda estava em Beauxbatons, o que contribuiu para que o conhecesse ainda menos depois. Mas ele é um dos grandes responsáveis pela maçante perda de pontos da Sapientai durante os anos letivos... - sorri amargurada e Anne fez o mesmo. Talvez para me estimular. – E por último, o avô, Edmond. Conhecemos ele na nossa festa de formatura, se lembra? Mas...
- Me deixa adivinhar? Também não pôde conhecê-lo melhor? – Brenda perguntou às minhas costas, divertindo-se. Olhei-a irritada e ela balançou os ombros. – Qual é, Bel? Você está muito melhor do que eu, que nem sabia quantos irmãos Chris tinha antes de ir a casa dele a primeira vez! Você fez tantas perguntas a Bernard sobre eles todos nesses últimos dias que é bem possível que saiba até a cor preferida, de cada um. – Anne riu ao meu lado.
- Podem achar engraçado, não me importo. Não escondo que estou nervosa. Tenho direito de estar assim? – perguntei azeda olhando as duas. – Vocês sabem como eu sou: reservada, tímida, quieta... Não é à toa que toda minha família fez questão de jogar na cara dele o espanto que sentiram quando o apresentei como meu namorado. As apostas eram que morreria solteira e cercada de livros e gatos.
- Acontece que Bernard também é assim! Mesmo que não tenha agradado toda sua família, pelo menos ele já enfrentou tudo isso. Ele já não é um estranho para eles, mesmo que tenha gerado comentários de diversas opiniões. Quem se importa? Quem se importa se eles vão gostar de você ou não? Você vai ficar com Bernard, não com a família dele... De qualquer maneira, eles vão gostar de você. Sou capaz de apostar quanto quiser. – Anne concluiu confiante e me senti um pouco mais leve.
- É claro que vão gostar! Você tem cada uma, Anabel... – Brenda disse um pouco sem paciência, voltando-se para o artigo em seguida. Elas tinham razão. Eu era uma boba.

Eu já me sentia mais tranqüila quando a campainha tocou. Pulei do sofá de um salto e corri até a porta. Parado ali, Bernard sorria para mim, tranquilamente.

- Você está atrasado. – eu disse acusando-o. Meu estômago iniciando uma nova série de acrobacias.
- Oi. – ele respondeu educadamente, me puxando pela cintura para um abraço e um beijo breve. Depois, ainda me segurando ao seu lado, cumprimentou Anne e Brenda, que sorriram empolgadas para ele. Se virou para mim, novamente. – Desculpe, fiquei preso na rede de flú com minha mãe. Ela está um tanto curiosa para saber como você é. Disse que minha mensagem de “minha namorada vai passar o Natal conosco” pareceu um tanto superficial, já que eles nem sabiam que eu estava namorando alguém. – ele sacudiu os ombros rindo e senti um gosto amargo na boca.
- O que você respondeu?
- Que era para ela deixar a curiosidade para ser respondida daqui a pouco, ao vivo. Ela está um tanto agitada e estranha. Não perguntou seu nome, mas se você tinha cabelo curto ou longo. Enfim... Estão nos esperando. Você está pronta?
- Quer a resposta sincera ou a corajosa? – perguntei fazendo-o rir e segurar minha mão com força, entrelaçando os nossos dedos.
- Você é inacreditável, Anabel. Não tem medo de nenhum dos treinamentos da Academia de Aurores, mas está toda gelada por ir conhecer minha família. Meros mortais, pacatos e inocentes. Te garanto que são bem mais “calmos” do que sua família, não se preocupe. Vão querer te adotar!

Seu tom de voz era firme e eu me vi sem saída. Nos despedimos das meninas e saímos para a rua gelada e deserta do prédio onde morava com elas, em Paris. Bernard despachou minha mala antes, com um aceno de varinha. Ainda segurando firme minha mão, me deu um beijo na testa sussurrando “relaxa” antes de aparatarmos. A estranha sensação de estar sendo espremida para dentro de uma garrafa, que geralmente as aparatações produziam em mim, foi bastante leve perto do desconforto que senti quando me vi parada em uma rua quase tão deserta e gelada de Marselha. A casa da família Lestel fazendo sombra a alguns metros na minha frente.

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Nem precisamos bater na porta, pois ela já estava destrancada. Senti minha mão suar gelado, grudada na mão de Bernard quando entramos na sala de visitas, vazia.

- Mãe? Pai? Chegamos... – Bernard gritou e sua voz ecoou pela casa toda.

Um segundo depois, o pai de Bernard apareceu nos avaliando e abrindo um largo sorriso a nos ver, se aproximando mais para cumprimentar. Bê era uma cópia fiel dele, pude constatar quando ele estava só a alguns centímetros. Os mesmos olhos azuis, nariz, boca, cor do cabelo e até altura e maneira como se movimentava, andando suave e despreocupadamente.

- Pai, essa é Anabel, minha namorada. Bel, esse é meu pai, também Bernard. – Bê nos apresentou, cordial, e seu pai estendeu a mão para mim, estranhamente empolgado. Um pouco sem jeito, apertei em resposta forçando um sorriso.
- É um prazer te conhecer, Anabel. Seja bem-vinda. – ele disse animado e balancei a cabeça em resposta, agradecendo e sentindo as bochechas queimarem. – Vou chamar Cecília para vir vê-los. Ela estava tão ansiosa...

Mas não deu tempo para que ele se afastasse, pois a mãe do Bê apareceu imediatamente e parou me encarando um instante com um sorriso no rosto demonstrando conformidade e mudando sua expressão drasticamente, um segundo depois. Seus olhos ficaram de repente vermelhos e inchados, e ela abriu um enorme sorriso, espontâneo e sincero, deixando várias lágrimas escorrerem por seu rosto.
Senti minhas pernas tremerem, pois sem nenhuma introdução ou preparo, ela correu até nós e me puxou para um abraço apertado fazendo Bernard soltar minha mão, igualmente espantado com aquela reação. Meus músculos estavam rígidos e os braços duros colados ao lado do corpo, enquanto Cecília ainda me mantinha presa no abraço e fazia várias lágrimas escorrerem por meus ombros. Quando Bê pareceu ter se recuperado um pouco do choque, interveio, puxando a mãe e fazendo-a se afastar de mim.

- Mãe... você está assustando a Bel. Quer dizer, todos nós. – Bernard falou enquanto me puxava novamente para seu lado, me abraçando pela cintura com firmeza e sorrindo para a mãe, que secava o rosto e me encarava emocionada e feliz. – Aconteceu alguma coisa?
- Desculpem, eu... não estava esperando... – ela confessou um pouco envergonhada e Bernard reagiu ao meu lado.
- Como não estava esperando? Avisei que viríamos há várias semanas e você ficou me prendendo na lareira até agora pouco! – ele disse exaltado e ela balançou a cabeça negativamente. Eu não queria deixar que esse pensamento tomasse uma forma intacta na cabeça, mas não conseguia deixar de notar que ela parecia um pouco... fora de órbita (para não dizer “maluca”). – Mãe... – Bernard recomeçou um pouco nervoso, mas ela o cortou.
- Não quis dizer que não estava os esperando. Eu sei que você me avisou, sei que já estavam vindo. – ela disse com clareza e Bernard relaxou, mas levantou a sobrancelha logo depois, em dúvida. – É só que... não estava esperando ela... hmm... uma menina. Tão bonita e... – não completou a frase, deixando-a morrer no ar e fazendo o ambiente cair em silêncio total.

Tudo o que ela ia dizendo não fazia o menor sentido para mim e aparentemente tampouco para Bernard. A suposição mais sensata que me agreguei para dar razão a essas últimas palavras foi que ela não esperava que Bernard namorasse uma garota tão bonita e me senti intimamente grata por esse elogio e pelo canto do olho vi a expressão do Bê, rindo internamente do constrangimento que deveria estar sentindo por ter chegado a essa mesma conclusão com as insinuações da mãe. “Mas tudo bem. Pelo menos não haviam esperado que ele morresse sozinho em uma biblioteca, contaminado pelo ácaro dos livros velhos e cercado de gatos”, eu pensei comigo mesma. Bernard, o pai, pigarreou.

- Cecília não está se expressando bem. Está um tanto exaltada, Anabel, desculpe por isso. – ele disse apoiando um dos braços nos ombros da mulher, que concordou depressa. Sacudi os ombros em resposta, forçando um sorriso.
- Ok. Vamos começar de novo. – Bê se recuperou também, firmando a voz. – Mãe, essa é Anabel, minha namorada. Bel, essa é minha mãe, Cecília.

Estendi a mão esperançosa para ela, que apertou a minha em resposta, ainda sorrindo largo. Terminada as apresentações, ficamos os quatro parados ali, nos encarando.

- Anabel... namorada... – Cecília disse baixinho para si mesma ameaçando recomeçar a chorar e se virou para Bê. – Ah, Bernard! Porque não nos disse nada antes?

Agora era fato: Cecília Lestel era maluca. Ou eu era. Mas ela não estava fazendo sentindo algum para mim. Olhei dela para Bernard e de novo para ela, sem entender mais nada e sem fazer esforço para entender também. Quando Bernard respondeu, parecia confuso.

- Mãe... sério: o que aconteceu com você? Pai... – olhou para o pai pedindo algum tipo de ajuda, mas Bernard o encarou cansado e disse:
- Cecília... você prometeu que iria se controlar.
- Desculpem! Desculpem! Todos vocês! – ela disse depressa nos olhando exasperada. – Desculpe, Bê. Não tinha preparado a reação para uma “quebra de expectativas”. Passei tempo demais ensaiando aquele sorriso conformado de mãe moderninha que aceitaria tudo pela felicidade do filho, já vi tantas vezes isso acontecer em filmes... Mas quando entrei aqui e vi você de mãos dadas com ela, Anabel, uma mulher... Não consegui segurar. Você só me surpreende.
- Não estou entendendo nada. – Bê disse se dando por vencido depois de alguns segundos e Cecília se virou para o marido, o olhar suplicante. Ele suspirou antes de assumir, firme:
- Ela pensou que você era gay, Bernard. Isso. Por isso estava esperando que você trouxesse um garoto até aqui e... Bom, vocês conhecem o resto da história.

Não sei como consegui controlar a risada que queria, por tudo, se soltar para a sala (que além de silenciosa, adquiriu uma tensão surreal). Bernard apertava tanto minha mão que agora a sentia gelada não de nervosismo mas por falta de circulação sanguínea. Encarava os pais com uma mescla de espanto e decepção. Abaixei os olhos para meus sapatos, decidida a esperar quieta pelos próximos movimentos de qualquer um dos três. Porém, a quebra de silêncio e tensão aconteceu com uma gargalhada sobrenatural de outra pessoa: Ian.
Sem que qualquer um de nós tivéssemos notado, ele havia entrado na casa e parado na porta onde, agora, lutava para não se esquecer de respirar em meio ao surto de risadas. Seu rosto já estava molhado de lágrimas e eu soube que ele tinha escutado a declaração final. Não conseguindo mais lutar, também comecei a rir de tudo: de Ian, da suposição absurda de Cecília e até da dormência nos meus dedos por causa da tensão que Bernard transpassava por seu aperto.

- Oi. Desculpem. – Ian disse ofegante olhando para todos nós, tentando se controlar mas ainda rindo abertamente. – Não pude deixar de escutar e... bem, vocês me conhecem. Não consegui segurar.
- Ian, você nos assustou! – Cecília disse em tom de censura, mas ele não pareceu se constranger, avançando vários passos até onde estávamos.
- Desculpe, tia, não foi minha intenção. Não teria agido assim se não tivesse escutado sobre sua suposição... Bernard... gay! – ele recomeçou a rir e Cecília fez uma careta para ele, reprimindo-o quase imediatamente. Bê encarava a mãe sem mudar em nada a expressão e parecendo nem ter notado Ian ali. Ela o olhou murcha de arrependimento.
- Não pense mal de sua mãe, Bernard. Ela não fez por mal. É só que, em todos esses anos, as únicas garotas com quem vimos você conversar foram Marie e Clarisse. Depois que Clarisse foi morar em Madrid e você nos disse que Ian gostava da Marie, então... não temos culpa. Você nunca dizia nada, nem nos apresentava ninguém! Ainda mais depois de se formar e sair de casa. Sua mãe pensou que você era gay e eu pensei que se tornaria padre! – Bernard disse em tom de defesa. Sem mais agüentar a dor da minha mão, puxei-a com força fazendo Bê soltá-la e me olhar como quem se desculpa (não pela mão) antes de responder.
- Vocês são inacreditáveis! Inacreditáveis! – Ian recomeçou a rir e Bernard também, por tabela. – Da próxima vez, podem me deixar um pouco mais constrangido. Ainda não foi o suficiente... – Cecília relaxou sorrindo também e abraçando ele, dando-lhe um beijo estalado no rosto. Bê olhou para mim, que ria ao lado de Ian por toda a confusão. - Não disse que iam querer te adotar? – perguntou sarcástico. Cecília se exaltou.
- Esclarecida a confusão, você não se importa se for até a cozinha terminar o almoço certo, Bel? – ela perguntou alegre e ao me chamar pelo apelido me fez sobressaltar um segundo antes de responder aliviada.
- Não, é claro que não. Precisa de ajuda? – ofereci, embora não soubesse fazer nada na cozinha. Ela sorriu com delicadeza.
- Não seja boba, é claro que não. Vá conhecer o restante da casa e do quarteirão com Bê e Ian. Depois do almoço, vou te mostrar algumas fotos da família... – ela piscou marota antes de ir para cozinha, acompanhada pelo marido. Bernard gemeu ao meu lado.
- Fotos não... – disse desesperado. Pensei que Ian fosse rir, mas ele acompanhou Bê na careta. – São muito comprometedoras. – Bernard disse e Ian concordou com a cabeça.
- Minha mãe também tem algumas dessas de nós dois, na infância... – ele comentou desanimado e ri.
- Mal vejo a hora de ver isso. – comentei maliciosa e os dois me encararam azedos. Balancei os ombros. – Não reclamem. Eu e Marie salvamos vocês da vida “virada” que prometiam, desde a infância.
- Eu mato minha mãe. – Bernard comentou azedo antes de puxar minha mão novamente para me mostrar o restante da casa. Ian nos nossos calcanhares.
- Quais as chances de encontrarmos esses álbuns de fotos antes de ela espalhar, Bê? – ele perguntou sem esperanças.
- Nulas. – Bê confirmou e ri.
- Vão comer na palma da minha mão.

Ian resmungou mais alguns desaforos e ameaças desistindo logo depois. Eu sempre teria alguns trunfos na manga e eles sabiam disso...

N.A.: Texto que recebeu uma grande e indispensável ajuda da Ju. Thanks! =D